terça-feira, 5 de dezembro de 2017

DOZE CONTOS PEREGRINOS/DOCE CUENTOS PEREGRINOS




















DOZE CONTOS PEREGRINOS
Gabriel Garcia Márquez
Tradução: Eric Nepomuceno
Editora Record, 1992





No primeiro parágrafo (en el primer párrafo), nos conta Gabo:



Boa Viagem, Senhor Presidente



Estava sentado no banco de madeira debaixo das folhas amarelas do parque solitário, contemplando os cisnes empoeirados com as mãos apoiadas no pomo de prata da bengala, e pensando na morte. Quando veio a Genebra pela primeira vez o lago era sereno e diáfano, e havia gaivotas mansas que se aproximavam para comer nas mãos, e mulheres de aluguel que pareciam fantasmas das seis da tarde, com véus de organdi e sombrinhas de seda. Agora a única mulher possível, até onde a vista alcançava, era uma vendedora de flores no embarcadouro deserto. Ele custava a crer que o tempo pudesse ter feito semelhantes estragos não apenas em sua vida, mas no mundo.


domingo, 26 de novembro de 2017

HAMLET

















HAMLET
William Shakespeare
Tradução Millôr Fernandes
Editora: L&PM







Hamlet, Ato IV, cena III, nos conta Shakespeare:

...

REI
Muito bem, Hamlet, onde está Polônio?

HAMLET
Na ceia.

REI
Na ceia, onde?

HAMLET
Na ceia. Mas não está comendo. Está sendo comido.
Um determinado congresso de vermes políticos se interessou por ele.
Nesses momentos, o verme é o único imperador.
Nós engordamos todos os outros seres pra que nos engordem; e engordamos pra engordar as lavras.
O rei obeso e o mendigo esquálido são apenas variações de um menu – dois pratos, mas na mesma mesa; isso é tudo.

REI
Ai, ai, ai!

HAMLET
Um homem pode pescar com o verme que comeu o rei e comer o peixe que comeu o verme.

REI
O que é que você quer dizer com isso?

HAMLET
Nada, senão demonstrar-lhe que um rei pode fazer um belo desfile pelas tripas de um mendigo.
...





segunda-feira, 10 de outubro de 2016

AS CIDADES INVISÍVEIS - LE CITTÀ INVISIBILI














CIDADES INVISÍVEIS
Italo Calvino
Tradução: Diego Mainardi
Cia. Das Letras, 1998




No primeiro parágrafo, nos conta Calvino:


1
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Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores. Existe um momento na vida dos imperadores que se segue ao orgulho pela imensa amplitude dos territórios que conquistamos, à melancolia e ao alívio de saber que em breve desistiremos de conhecê-los e compreendê-los, uma sensação de vazio que surge ao calar da noite com o odor dos elefantes após a chuva e das cinzas de sândalo que se resfriam nos braseiros, um vertigem que faz estremecer os rios e as montanhas historiadas nos fulvos dorsos dos planisférios, enrolando um depois do outro os despachos que anunciam o aniquilamento dos últimos exércitos inimigos de derrota em derrota, e abrindo o lacre dos sinetes de reis dos quais nunca se ouviu falar e que imploram a proteção das nossas armadas avançadas em troca de impostos anuais de metais precisos, peles curtidas e cascos de tartarugas:  é o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

NÚMERO ZERO /NUMERO ZERO

































NÚMERO ZERO
Umberto Eco
Tradução: Ivone Benedetti
Record, 2015




No primeiro parágrafo, nos conta Umberto Eco:



I

Sábado, 6 de junho de 1992, 8 horas




Hoje de manhã não saía água da torneira.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

AGORA E NA HORA DA NOSSA MORTE


















AGORA E NA HORA DA NOSSA MORTE
Susana Moreira Marques
Edições tinta-da-china, 2013




No primeiro parágrafo, nos conta Susana:



NOTAS DE VIAGEM SOBRE A MORTE




Há coisas sobre as quais não se pode escrever como sempre se escreveu. Algo muda. Primeiro os olhos, depois o coração – ou os nervos ou aquilo a que os antigos chamavam alma – e finalmente, as mãos.





quinta-feira, 2 de junho de 2016

UM COPO DE CÓLERA








UM COPO DE CÓLERA
Raduan Nassar
Cia das Letras, 2001.



No primeiro parágrafo, nos conta Raduan Nassar:



A CHEGADA


E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com os nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?” e como ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da geladeira, fui até a pia e passei água nele, depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o que ia me restando na mão, fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha boca, e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando acabei de comer, o tomate eu a deixei ali na cozinha e fui pegar o rádio que estava na estante lá da sala, e sem voltar pra cozinha a gente se encontrou de novo no corredor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

O arranjador de palavras

foto by: Roberto Candido


O arranjador de palavras
J.cordeirovich
Scortecci Editora, 
outono de 2016.



 No primeiro parágrafo, digo poema, nos conta: J.cordeirovich:


Vidraça


No deserto aqui sentado da sala
Nem um Outro se aproxima
Nem dos livros ali largados
Nem o vapor do aço
De quem nos dita do valor das horas
Transcorrendo calmamente

Minhas mãos espalmadas
Na escuridão
A escorregar
Nave no lá
Aurora deixada no ar

O som da vizinha casa me vem
E o silêncio também pede
Uma orquestra

Quem está em cena?
É bela morena
Que fala, fala, faz
Ao sincronizar
Pontas de pés
Ajustados em brancas sapatilhas
Que justamente
Como quem dedilha
No chão, no ar
O risco
Um piano de Chopin
Um iluminador tardio
Velho funcionário do
Mais velho ainda, teatro.

Deixa que apenas
Uma aresta de luz
Na cena, mostre bela e plena
Numa magistral visão
Braço, coxa, seios
Pernas, pés.
E o vão do não
Da vaga rua

Desenhada no ar
A melodia entra em convulsão
Não,
Concluo.
Há cinema nisso que vejo
Na vidraça holográfica
Do real que reúne e entorpece
num cinema de cores.